Le Joujou Du Janus




[queridos já receberam por e-mail este texto, que espero inaugurar alegremente a nossa correspondência em 2010, por todas as vias, palpáveis e impalpáveis, tête-à-tête, ou na Certeza de Fazer o Mal].

Com este embaraço de letras, venho à EverLand para desejar um bom ano a cada um de vocês.
(...)

Do preâmbulo ao preâmbulo:
De Jano, o deus dupla face, tirei o corredor de cifras: nuvens desenham aves, em tempos bicudos. Mais líquida do que a verdade, qualquer promessa-mensagem, sob o sopro de um sopro. Assim sendo, bolo e embolo a passagem do ano com resquícios de substância, fragmentos e tiras visuais, de onde retiro o sustento de experiências extraordinárias − estas que habitam cada milímetro da trivialidade, justo na parte que a vista geral alcança: não mais do que as velhas quimeras projetadas à distância.
 
Corto a carne disso, e eu mesma gentilmente sangro. Disfarço o gozo de ser simples, este a vestir-se e revestir-se, como quem não quer nada, com o hábito (o melhor disfarce), e amo aos amigos assim, com a crueza inexistente nos galanteios, perceptível somente no amor de fato.
A porta é estreita, mas, se abre para entrada, também permite a saída. Espero que fiquem logo exatos e confortáveis no espaço a espalhar-se, quando se gira de uma vez a maçaneta.

Lá vai o início e todo o resto:

O Ano-Novo atrás de um filtro
Das bananas, o pretume na casca, de onde se desprendem moscas e mosquitos. De madrugada, móveis estalam, e cada inseto move-se no escuro, entre a cesta de frutas e o golpe da lagartixa − pequena vigia com lepra. Espera a presa e abocanha esta, num truque, embora, para isso, não precise de astúcia, só da própria sorte.

Outros barulhos destacam-se do ar, além do zunido baixo da selva doméstica: penduricalhos; gargalhadas − e o que mais farfalha; pilhas e pilhas de rostos, embaraçados na memória, enquanto, perto da lâmpada, há um pernilongo e outros seres mágicos.

Eu e a casa formamos o mesmo corpo. Mortos poderiam soprar a verdade em nosso ouvido e outras fendas, e ainda sairíamos desta matéria-lagartixa, largada na parede branca, com olhos antigos e mansos, suspensos num segredo vivo. Assim, invisíveis e imóveis, no meio de eternidades e coisas.

Não é tudo. Há talheres em gavetas; vidros estranhos, opacos, de copos alinhados nas prateleiras. E além do aquém, o brilho contra o espelho, talvez (como tudo, talvez) o vestígio de uma face, que não se reflete e nada reflete − verbo inflexível, avesso da lógica.

Então, cada vida e morte embaixo da pia, ou entre as frestas das telhas, por onde a água estraga os bens duráveis e os trovões penetram, vidro sobre latas.


Planejo cartas para amigos. De meridiano em meridiano, espalha-se este ano - novo em folha, agendas e folhinhas, à esquerda e à direita do centro, da linha imaginada por geógrafos, a linha que não existe, no tempo que não existe, dividido em horas.

Amores e repugnâncias vão brotar ainda em cada parte, separados ou juntos; iguais ou diversos. O alegre e o triste em alternâncias, e o inominável: abismo cuja violência será vista num troar apenas, que, embora esteja em qualquer um e mate a todos, ferirá somente um ou a poucos.

Quem sabe o de outra ordem? Um milagre: o pequeno a se estender no grande, inteiramente; ou não, a falta de inocência, também abstrata, em toda parte; ou esta fome de mostrar aqui a matemática da música, embora não possa mostrar nem mesmo a borbulha do espumante de ontem, nem mesmo a mim, que já cochilo entre as palavras, enquanto a lagartixa some e entra noutro sonho.

Certas experiências estão sempre fora da narrativa. Se tentamos prendê-las em versos, as pequeninas fadas revoltam-se, e aos lares revoltos retornam-se, entornam-se, em buracos enormes. Elas, agulhinhas num fogo de palha. Num átimo, o tempo encantou-se.