Recados e Silêncios

DE NANÃ A HEBROM: A TRAJETÓRIA DO VERSO.

Temos diante de nós um livro de poemas intitulado Pleno Deserto. “Tudo está cheio de deuses”, disse o pensador pré-socrático Tales de Mileto, o qual, acreditando que o elemento primordial de todas as coisas era a “água”, estava imbuído de paganismo, do encantamento da natureza. As religiões monoteístas, abraâmicas, por sua vez, geminaram no deserto. A melodia das páginas que se seguem é feita do contraponto entre uma natureza divina e os salmos de entes perdidos, errando por uma “terra seca, esgotada, sem água”.


Pleno Deserto é uma peregrinação sedenta e aquosa pelo vazio que é plenitude; pela plenitude que é vazio. “À espera de milagres”, “inermes”, eis, pois, a sina dos mortais, estampada em poemas como “Cuia dos Milagres” e “Inerme”. Milagres acontecem, fazem-nos sentir que somos deuses. Todavia, por acontecerem, são meros episódios. Logo deixamos de ser deuses; somos “adeuses” dados depois de uma viagem.

Nanã é a divindade africana das águas paradas, dos pântanos e da lama. É também a responsável pelo portal da entrada neste mundo, bem como por aquele mediante o qual se sai da vida terrena. Nanã aparece no primeiro poema do livro, dá o fluido e moldável fluxo de Pleno Deserto. A aridez do deserto é da ordem do “sonho na concha” – “úmido silêncio”. Mas o sonho sai do caramujo, e o sol “estende-se em estupendo lençol:/ enorme plantação de laranjas”, e o ser desperta com “a alma na boca”.

As artimanhas do “estro” – o termo significa tanto cio quanto imaginação poética – surgem mesmo nas manhãs frias de “Alba”, nas quais o amado partiu antes do término da noite. Sob as artimanhas do estro, como se vê em “Cimo” – um dos pontos altos do livro – não há perda, mas acúmulo de “doçura”, “susto”, “guerra”, “loucura”, pois o que é sumo, ainda que abismal, é cimo, porquanto há sempre outra face a ser dada, a ser vista e, mesmo na maior mágoa, há a ressurreição nos conventos ou nos lupanares, no recato e no desacato.

O caráter indiscernível desse “pleno deserto” de Maiara Gouveia implica “flores de sangue” e “mulheres líquidas que esvaem”: gozo que é agonia; agonia que é gozo. Um segundo a mais é o que pede o mortal, sequioso da imortalidade de alguém, do amor ou de qualquer forma de “sede sempiterna”, pois a única maneira de bastar-se é “transformar todo o desejo em saciedade”: “águas são deserto” e o conhecimento do inferno impõe-se aos nossos parâmetros paradisíacos. De modo que a aridez do deserto, para além da morte que a vida pode incorporar e cantar, manifesta-se em sua ruidosa mudez em todos os lugares, até nos recantos mais insuspeitos como uma “sala de poetas”. Eu disse “insuspeitos”, mas deveria dizer “os mais suspeitos”, pois ninguém é traído a não ser pelos seus. O canto até pode “inundar essa sala”, onde jazem os literatos com a concisão de suas “palavras magras”, com o seu estro anoréxico, que nunca rasga o verbo ou a fantasia. Mas esse canto jamais servirá para erguer torres de marfim, soando apenas para derrubar as torres de Babel ou as muralhas de Jericó.
A poesia é medida e desmesura, sem nenhum compromisso com a cortesia ou com o comedimento. Seu angelismo é luciférico: é o dos “anjos de rapina”, dos anjos-chacais. Diz o Bom Livro que a chuva cai sobre os justos e os injustos, assim, nada mais justo – ou injusto – que a raposa ver “o sagrado na presa consumida”. Mas a chuva é feita de lágrimas, das lágrimas do Alto, que banham as folhas vermelhas do sangue derramado.

Em Pleno Deserto, a poeta toca em pontos pungentes da vida, que é sempre visceral, brutal e poética, em que pese a pluma leviana dos poetas: a vida é morte, predação, belas frutas são tão apetitosas como o sangue fresco dos filhotes. Fome e sede são o mote que atravessa o pleno deserto poético de Maiara.

Detrás de um texto, há um número infindo de outros textos. Dentre os textos que formam a trama de Pleno Deserto está o salmo 63, citado pelo magnífico poema “Presságios”. O salmo 63 é aquele que diz: “Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te procuro./ Minha alma tem sede de ti,/ minha carne te deseja com ardor,/ como terra seca, esgotada, sem água./ Sim, eu te contemplava no santuário,/ vendo teu poder e tua glória.” Em “Presságios”, uma mulher, sintomaticamente chamada “Dolores”, encarna a “dor ancestral”, na qual “não cabem visões de plenitude”. Dolores fecha as janelas e apaga a luz. Às vezes é melhor o sono reparador do que o sonho vão, neste nosso mundo “sublunar”. De acordo com a visão aristotélica do cosmos, o que está abaixo da Lua é imperfeito, ao passo que o “supralunar” seria perfeito. O mundo de “Presságios” é sublunar. Nele, a lua é mera mancha do sol, pendendo sobre o grande ermo que é esta existência, espelhando a nossa face de mortais, dissolvidos na eternidade e – no mar.
Busco agora o auxílio de um poeta experiente na arte não só de escrever, mas de ler poemas dos outros: Octavio Paz. Em seu famoso livro O Mono Gramático, o poeta mexicano afirma que a poesia não está escrita numa gramática paradisíaca. Diríamos, pois, que está escrita numa gramática da Queda. De fato, a natureza é inocente e decaída ao mesmo tempo. Para Paz, a linguagem é a “crítica do Paraíso”, pois no Paraíso as coisas tinham nomes próprios, ou seja, coisas e nomes eram o mesmo. O aparecimento da linguagem seria a própria Queda, o diabólico reino da arbitrariedade do signo.

Eis o que diz Paz: “O poeta não é o que nomeia as coisas, mas o que dissolve seus nomes, o que descobre que as coisas não têm nome e que os nomes com os quais as chamamos não são seus. A crítica do paraíso se chama linguagem: abolição dos nomes próprios; a crítica da linguagem se chama poesia: os nomes desgastam-se até a transparência, a evaporação. No primeiro caso, o mundo torna-se linguagem; no segundo, a linguagem converte-se em mundo. Graças ao poeta o mundo perde seus nomes. Então, por um instante, podemos vê-lo tal qual ele é – em azul adorável”.

Essa concepção da poesia e do papel do poeta pode talvez captar o sentido de poemas como “Primeira Visão” e “Oblação”, nos quais não há uma “palatável” fruição do sagrado, mas sim uma visão abismal do sagrado a partir da cisão fundamental entre o divino e o humano, pois os mortais “vivem na ira de Deus” e “não há piedade nos caminhos de Deus”. A Beleza, como nos advertiu Rilke, é o grau do terrível que podemos suportar. A visão do divino é aniquiladora, por isso, só podemos vê-lo por um instante e depois perecer, perdendo-nos no terrível, infinito azul adorável. Além de “Cimo”, Pleno Deserto tem um outro cimo: “Oblação”. Nesse poema, a condição do poeta aparece em toda a sua pungência, assim como a sede e o salmo, que são os fios condutores do livro, adquirem seu pleno sentido. Diz a poeta: “Meu salmo não serve para encontrar a paz./Procura apenas a vibração da beleza.” Acredito que todos aqueles que, algum dia, com seriedade, tentaram ser poetas podem adotar esses versos como divisa. Ser poeta não é ser alegre. Tampouco é ser triste. É, seguindo Cecília Meirelles, “cantar porque o instante existe”. “Sei que minha carne em breve será pasto/ do rude mensageiro”, afirma Maiara. Mas acrescenta: “Preparo meu corpo para o encontro/ com lágrimas de êxito.” Ao lado da sede que salmodia, as lágrimas, também na forma de chuva, são fenômenos que percorrem Pleno Deserto.

A visão de mundo antiutópica dos poemas impede que se abrace alguma utopia fácil, que reduza a felicidade humana a um esquema político, no fundo, administrativo. O caminho que aqui se traça é o da umidade íntima, mística e lacrimosa, na qual, todavia, permanece o Ser. O Ser é o que “sempre será”. Mas o Ser não é “verdade nenhuma contra a luz do sol”: nunca é uma evidência, algo que deixa “pegadas”, sempre é “na sombra das águas”.

O sol é árido, em sua inclemência pode trazer a desértica esterilidade. O sol costuma ser imagem da Razão, do ressequido, da dissecação, do ressentimento, frio em sua ardência calculista. A “metafísica da água”, dionisíaca, destitui Apolo – deus da simetria, identificado ao Sol – de sua árida razão, de sua estatuária eternidade: dos diques construídos para deter “a beleza erradia das águas antigas”. Mas as águas antigas não têm o condão de destruir o poder apolíneo. Flexíveis, as águas se amoldam ao “pulso” do verbo de um potente poeta.

A lógica da Queda elimina a subordinação de um ente a outro. Todos jazemos sob a Queda; todos, menos o Grande Outro, mas mesmo ele, ao fim e ao cabo, opta por cair e ser todos e Ninguém.


A perspectiva da poeta é a da “água lunar”, que puxa o “animal solar para dentro da lua” e o “helianto (girassol) para o centro da noite”. Não obstante a Queda, esta traz a “união dos caídos”, a “comunhão do exílio” e o sacrifício vivo, que pode ser muito bem o consumo da hóstia ou a consumação das núpcias, do “Himeneu” que vai fechando Pleno Deserto. “Himeneu” tem a mística erótica dos bíblicos Cantares de Salomão, evocação corroborada pela alusão a Hebrom. O vale do Hebrom é o local onde os primeiros patriarcas hebreus estão enterrados. “Himeneu” seria um “hierógamos”, um casamento sagrado que cicatrizaria as feridas. Mas as feridas nunca se fecham: “sempre ferida aberta o amor”. E “não se retém o amor na concha das mãos”.

O vale do Hebrom, atual palco de acirrados conflitos entre judeus e palestinos, não pode ser a última palavra, o último poema. O Poema não se ultima. “A morte canta. O corpo sonha”. O sonho – diria a alma –, que anima o corpo, significa “não viver a despedida com afinco”. Há a nênia – canto fúnebre – contraponteada pelo allegro do sonho do corpo. A nênia é o canto de Nanã, essa Deméter africana, regendo os submundos do Ser. Nanã nunca faria um par perfeito com um patriarca hebreu, contudo: “Há tanto mistério a ser capturado em pleno dia./ Há tanta morte emudecida no sonho do corpo.”

A trajetória do verso culmina com o reverso. Eis o ponto final, que são reticências; o conflituoso ponto pacífico. De novo, Paz: “O caminho da escritura poética resulta na abolição da escritura: no final, ele nos obriga a enfrentar uma realidade indizível”. “A poesia é número, proporção, medida: linguagem – só que uma linguagem voltada sobre si mesma e que se devora e se anula para que apareça o outro, o sem medida, o vazamento vertiginoso, o fundamento abismal da medida. O reverso da linguagem.”

FEV./08 - Mario Dirienzo

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Presságios

A lua (mancha do sol)/espelha a face do homem/dissolvida na eternidade. Os animais intuem a curva/em que todas as formas se equilibram/para não cair no esquecimento./Mas nada interrompe o curso da sorte.//A garganta do vale se abre primeiro./Um anjo surge e anuncia em silêncio/as forças que pulsam na água e na terra./São homens que sentiram no dorso/ o presságio dos bichos./Depois, a visão da queda: coroa pendurada no deserto./Ou paixão pelo homem esmaecida/no tempo arenoso das origens.//Vemos, do alto, nossa casa./Crianças dormem. O homem tem sede./Dolores clama pelo doente./Mulheres lêem o salmo 63./Dolores pensa: melhor fechar as janelas./E apaga a luz.//Não cabem visões de plenitude. Mas cortam o ar espesso/imagens da dor ancestral./Serpente que durante a noite penetra a areia/e arrebenta escamas de prata./Tudo sombra de deus. E tudo marchando adiante.//Os homens sucumbem antes. Pois partem mais cedo./Esporas sobrando. Fogem da própria sombra e temem/as vozes mais sinceras do sonho.//A lua pende nesse grande ermo./Pulsam resíduos do segredo./E cantos dissolvidos no mar.

Maiara Gouveia