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Mujeres-Women-Mulheres, 8 de março | n. 3

[acrescentei PS]

“(...) há uma desastrada lembrança de mim mesma, alguém-mulher querendo compreender a penumbra, a crueldade.” Hilda Hilst





  Quando a Ana me convidou para participar da Oficina “Mujeres-Women-Mulheres” http://mulheres-mujeres.ning.com/, não cogitei mais ninguém: tinha de ser Hilda, tinha de ser Helder e tinha de ser a Pagu O feminino assim: cheio de enigmas e grandes promessas. A mulher que inaugura o tempo. Aquela a pensar do interior da carnadura e pulsante, que se desdobra ao redor de perguntas sem resposta, labirinto corpóreo de regiões intangíveis. Ou, nas palavras de Freud que encontrei casualmente: “continente escuro”. Então, bastou escolher os textos.

 
Primeiro, a menstruação quando na cidade passava. Depois, natureza morta. Hilda deu mais trabalho: procurei encaixar a obscena Senhora D. ou Qadós. Por fim, reconheci ser pretensioso demais, um tanto quanto desastrado e até, vejam só, desrespeitoso, embocar esses escritos no meio de um encontro de duas horas em que haverá outras leituras não menos exigentes. Fiquei matutando: será que Helder e Hilda não podem fazer par na mesma noite? Assim, lembrei do “tempo do corpo”, da “carnadura que se desfaz em sangue”, de um tempo da fome, “do de dentro”, e houve as bodas. A mulher de olhos moles será, na composição, uma chave, para este mundo, sempre considerado perigoso, sempre cheio de enigmas e grandes promessas.

 
Nada é o bastante. @denisearcoverde, no twitter, sugeriu um vídeo: http://ow.ly/1f7DB. Caímos dali para cá:

“...Senhora D, se ao invés desses tratos com o divino, desses luxos do pensamento, tu me fizeste um café, hein? (Hilda Hilst)
Lendo o Caderno Rosa da Lory Lamb, crudelíssimo, e pensando nisso, de ser imagem, de ser carne extraída da costela ou reflexo, o grande par de tetas e a fenda onde se entra. É isso mesmo? Toda polêmica quer desviar sua atenção. É o que digo. Achei excelentes quase todas as falas da Subsecretária do Enfrentamento da Violência Contra a Mulher. E esta, da socióloga: “O que falta é a ótica feminina do que é sensualidade.”

Hilda Hilst: Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas. (Oscar Wilde) E quem olha se fode. (Lori Lamby)

Por hoje, é só. Amanhã, na Casa das Rosas, às 17 horas, te espero http://migre.me/mihA. Escolhi um batom roxo, à la Pagu. Ah, já me esquecia. Encontrei com o Carlos Eduardo no Google Talk, que manda notícias sobre a banda @esquema_ape. CD produzido com o pessoal do Ludov. Gravações etc.


Beijos, Mai.

pagu e a esfinge de tebas




[Cenas dos próximos capítulos]


decifra-me ou te devoro


fragmentos: escritos de patrícia galvão


“esses que possuiam pregos para fincar na minha cabeça, e na ponta de cada prego a palavra SIM. Ao que eu respondia NÃO.”

“Por que o poeta não morre?
Por que o coração engorda?
Por que as crianças crescem?
Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?
Por que existem telhados e avenidas?
Por que se escrevem cartas e existe o jornal?
Que monótono o mar!

Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo.
Si eu ainda tivesse unhas
Enterraria os meus dedos nesse espaço branco
Vertem os meus olhos uma fumaça salgada
Este mar, este mar não escorre por minhas faces.
Estou com tanto frio, e não tenho ninguém ...
Nem a presença dos corvos.”

Through the Looking-Glass And What Alice Found There” (1871) Lewis Caroll


“Tickets, please!” said the Guard, putting his head in at the window. In a moment everybody was holding out a ticket: they were about the same size as the people, and quite seemed to fill the carriage.
[. . .]
All this time the Guard was looking at her, first through a telescope, then through a microscope, and then through an opera-glass. At last he said, “You’re travelling the wrong way,” and shut up the window and went away. (p. 52)


Alice never could quite make out, in thinking it over afterwards, how it was that they began: all she remembers is, that they were running hand in hand, and the Queen went so fast that it was all she could do to keep up with her: and still the Queen kept crying “Faster! Faster!” but Alice felt she could not go faster, thought she had not breath left to say so. (p. 41)

De Wallace Stevens

Pablo Picasso



The man bent over his guitar,
A shearsman of sorts. The day was green.


They said, "You have a blue guitar,
You do not play things as they are."

The man replied, "Things as they are
Are changed upon the blue guitar."

And they said then, "But play, you must,
A tune beyond us, yet ourselves,

A tune upon the blue guitar
Of things exactly as they are."

Mais Wallace Stevens aqui

The Man with the Blue Guitar - excerto

Sobre 2007

Coincidência?

...Foi um ano (um «biénio») em que tropecei em ilusões e depois me confrontei com violência com aquilo a que talvez chamem o meu «valor», que eu conhecia mas que não quis aceitar assim tal qual me foi dito (sem ser dito, sem nunca ser dito, essas coisas obviamente não se dizem). Foi o ano em que tentei a «fortaleza», como virtude moral e apenas consegui a fortaleza como sítio fortificado. E agora que o ano termina, ainda acho insuficientes estas muralhas.

Pedro Mexia. In: blog Estado Civil (sugestão de Dirceu Villa para os curiosos)

Mais Dylan Thomas

Antes que eu batesse
Antes que eu batesse e a carne me deixasse entrar,/Com as líquidas mãos submersas no ventre,/Eu, que era informe como a água/Que modelava o Jordão perto da minha casa,/Fui irmão da filha de Mnetha/E irmã do ventre que procria.//Eu, que era surdo ao verão e à primavera,/Que não conhecia de nome nem a luz nem o sol,/Ouvia pulsar sob o arcabouço de minha carne,/Até então sob uma forma diluída,/As plúmbeas estrelas, o martelo da chuva/Brandido por meu pai em suas cúpulas.//Eu conhecia a imagem do inverno,/Os dardos da chuva de granizo, a neve infantil,/E o vento era minha irmã prometida;/Assaltavam-me o vento e o orvalho do inferno;/Minhas veias fluíam com a canícula do Oriente;/Conheci a noite e o dia antes que me concebessem.//Antes que me concebessem, eu já sofria;/O flagelo dos sonhos retorcia/Meus ossos de lírio numa cifra viva,/ E a carne era cortada para cruzar os bordos/De cruzes patibulares que se erguiam no fígado/ E as sarças nos cérebros convulsos.//Minha garganta teve sede antes que se formasse/A estrutura da pele e das veias ao redor do poço/Onde as palavras e a água produziam uma mistura/Que persistia até que o sangue arruinasse;/Meu coração sabia amar, meu estômago tinha fome;/Eu farejava o verme e minhas próprias fezes.//E o tempo exalava meu ser mortal/Para arrastá-lo ou afogá-lo na crista das ondas/Acostumada à odisséia salgada/Das marés que jamais alcançariam as praias./Eu, que era rico, tornei-me ainda mais rico/Por embriagar-me com o vinho dos dias.//Eu, nascido da carne e do espírito, não era/Nem espírito nem homem, mas um espectro mortal./E derrubaram-me as plumas da morte./Fui mortal até o derradeiro/E longo sopro que transmitiu a meu pai/A mensagem de seu cristo agonizante.//Tu, que te ajoelhas ante a cruz e o altar,/Recorda-me e tem piedade Daquele/Que tomou minha carne e meus ossos por couraça/E atraiçoou o ventre de minha mãe.

In: Poemas Reunidos. Tradução de Ivan Junqueira.

Um pouco de Dylan Thomas

A mão ao assinar este papel

A mão ao assinar este papel arrasou uma cidade;/cinco dedos soberanos lançaram a sua taxa sobre a respiração;/duplicaram o globo dos mortos e reduziram a metade de um país;/este cinco reis levaram a morte a um rei.//A mão soberana chega até um ombro descaído/e as articulações dos dedos ficaram imobilizadas pelo gesso;/uma pena de ganso serviu para pôr fim à morte/que pôs fim às palavras.//A mão ao assinar o tratado fez nascer a febre,/e cresceu a fome, e todas as pragas vieram;/maior se torna a mão que estende seu domínio/sobre o homem por ter escrito um nome.//Os cinco reis contam os mortos mas não acalmam/a ferida que está cicatrizada, nem acariciam a fronte;/há mãos que governam piedade como outras o céu;/mas nenhuma delas tem lágrimas para derramar.

In: A Mão ao Assinar este Papel, tradução de Fernando Guimarães

De Zeami

A flor do teatro


Olhando as plantas em flor, perguntamo-nos: por que se simboliza por uma flor todas as coisas do mundo? É pela sua existência efémera que se gosta delas, elas só florescem durante uma estação, são raras.
De igual modo, o Nô fala ao coração e suscita o interesse. A flor, o interesse e a raridade, eis a maravilha do Nô.
Florir e murchar são inevitáveis; é o que torna as flores maravilhosas. O encanto do Nô, sua flor, encontra-se na virtude da mudança. O Nô nunca é estático, transforma-se sem cessar, como a flor, e é esta mudança que o torna tão raro.
No entanto, é necessário respeitar as suas regras e evitar a extravagância, mesmo na demanda da raridade e da novidade. Após todos os exercícios, no momento de apresentar um Nô, é preciso escolher de acordo com a situação. De entre todas as flores, só é verdadeiramente rara aquela que eclode no seu quadro temporal. Do mesmo modo, se aprendestes bem as numerosas técnicas das artes, escolhereis adaptando-vos à época e ao público; será como uma flor na sua estação.
As flores de hoje são semelhantes às do ano passado. Assim, o Nô, mesmo tendo já sido visto antes, ou inscrevendo-se num repertório importante, retornará, após a passagem do tempo, igualmente raro.


Como atingir o prodígio
...No Nô, é bela a atitude que equivale à flor. Para a possuir, é preciso ter coração. O que é o coração? É a compreensão da teoria da flor. É preciso também, naturalmente, aprender os movimentos e os gestos com os hábitos refinados, para se conseguir representar com beleza. Mas o essencial é encontrar a chave que permite representar na beleza, mesmo que a mímica seja diferente segundo os variados tipos de papéis. É assim que se atinge o prodígio. Muitas vezes, temos tendência para nos preocuparmos apenas em imitar os gestos do papel, e acreditamos ter atingido o grau superior. Mas não é verdade, porque se nos esquecemos de manter uma bela atitude, não atingimos o prodígio; e, neste caso, é difícil chegar ao nível supremo, e é impossível tornar-se um mestre. Por este motivo, os verdadeiros mestres são raros. É preciso, então, ter em conta a importância do prodígio.


De Zeami. O Espelho da Flor e outras obras - século XIV. In: Estética Teatral - Textos de Platão a Brecht. Organização de Monique Borie, Martine Rougemont e Jacques Scherer.

Mais Rainer Maria Rilke (1875 - 1926)

QUINTA ELEGIA
Dedicada a Frau Hertha von Koenig

Mas quem são eles, dizei-me, os saltimbancos, um pouco/mais efêmeros que nós mesmos, desde a infância/por alguém torcido – por amor/de que vontade jamais saciada? Entretanto ela os torce,/curva-os, entretece-os, vibra-os,/atira-os e os toma de volta! Do ar untado/ e mais liso, eles resvalam/sobre o tapete gasto (adelgaçado/pelo eterno salto), esse tapete perdido no universo./Emplastro aderido lá, onde o céu/do subúrbio feriu a terra.//E apenas lá,/Ereto, mostra a grande maiúscula/Inicial da Derelicção...e já o renitente/Agarrar torna a rolar os homens mais fortes,/por jogo, como outrora Augusto o Forte, à mesa,/brincando com patos de zinco.//Ah! e em torno desse centro,/a rosa do contemplar:/floresce e desfolha. Em torno do/triturador, o pistilo atingido por seu próprio/pólen florescente, novamente fecundado – fruto/aparente do desgosto, inconsciente de si mesmo –/com a fina superfície a brilhar/num sorriso leve, simulado.//(...)E o homem torna a bater as mãos para o salto...Antes/que a dor se torne mais nítida e próxima do teu coração/sempre alterado, antecipa-a e à sua origem, o ardor/das plantas dos pés, que empurra à flor dos/olhos algumas lágrimas corpóreas./E contudo, às cegas,/o sorriso...//Anjo, toma, colhe a erva medicinal de flores singelas!/Modela um vaso e dá-lhe abrigo! Preserva-a entre as/alegrias não desabrochadas; celebra-a em/carinhosa urna, com uma inscrição florida inspirada:/  Subrisio Saltat./E tu, graciosa,/esquecida no silêncio/das alegrias vivas e apressadas. Talvez/sejam felizes por ti as franjas dos teus cabelos,/ou quem sabe, sobre teus seios jovens e túmidos,/a seda verde-metal sinta-se mimada e nada lhe falte./Tu,/colocada sempre de um modo novo/sobre os carros oscilantes do equilíbrio,/fruto de feira da indiferença,/exibida ao público, entre os ombros.//(...) E de repente, neste árduo Nada,/o ponto inexprimível onde a insuficiência pura/incompreensivelmente se transforma - e salta/àquela vazia plenitude/onde o cálculo de muitos algarismos/se resove sem números.//Praças, ó praças de Paris, feira infinita,/onde a modista Madame Lamort/tece e retorce os caminhos inquietos do mundo –/numerosas fitas – em laços imprevistos, folhos, flores,/laçarotes, frutos artificiais, tudo falsamente colorido/para os módicos chapéus de inverno/do Destino.//Anjo, talvez haja uma praça que desconhecemos, onde,/Sobre um tapete indizível, os amantes, incapazes aqui,/pudessem mostrar suas ousadas, altivas figuras/do ímpeto amoroso, suas torres de alegria, suas trêmulas/escadas que há muito se tocam onde nunca houve apoio:/e poderiam diante dos telespectadores em círculo,/incontáveis mortos silenciosos. E estes arrojariam/suas últimas, sempre poupadas,/sempre válidas, diante do par/verdadeiramente sorridente, sobre o tapete/apaziguado.
in: Elegias de Duíno, Tradução de Dora Ferreira da Silva

Mais Saint-John Perse

"Depois de tanto tempo a caminharmos para oeste, que sabíamos nós das coisas perecíveis?...E de súbito, a nossos pés, as primeiras névoas.
- Mulheres jovens! e a natureza dum país toda delas perfumada:


Eu te anuncio os tempos dum calor imenso e viúvas aos gritos sobre a dissipação dos mortos.
Aqueles que envelhecem no uso e no desvelo do silêncio, sentados nas alturas, consideram as areias
e a solenidade do dia sobre as angras desérticas;
mas o prazer ao flanco das mulheres se compõe, e em nossos corpos de mulher há como que um fermento de uva negra, e em repouso nós mesmas nunca estamos.
Eu te anuncio os tempos duma dádiva imensa e a felicidade das folhas em nossos sonhos.



Aqueles que conhecem as fontes estão conosco neste exílio; esses, que conhecem as fontes, dir-nos-ão à noite
sob que mãos premindo a vinha destes flancos
se enchem nossos corpos duma saliva? (E a mulher deitou-se com o homem na erva; ergue-se, põe ordem às linhas do corpo, e o gafanhoto vai-se, voando na sua asa azul.)


Eu te anuncio os tempos dum calor imenso, e também a noite, sob o latir dos cães, suga o seu prazer no flanco das mulheres.
Mas o Estrangeiro vive na sua tenda, honrado de leites e de frutos. Levam-lhe água fresca
para que nela lave a boca, a cara e o sexo.
Levam-lhe à noite grandes mulheres estéreis (ah! mais noturnas durante o dia!). E talvez também de mim obtenha ele o seu prazer. (Não sei que modos tem com as mulheres.)


Eu te anuncio os tempos duma dádiva imensa e a felicidade das fontes em nossos sonhos.
Abre a minha boca à luz, como um lugar de mel entre as rochas, e se em mim achar mácula, banida seja!
senão,
que eu vá à tenda, e vá nua, perto da bilha, sob a tenda,
e, parceiro do canto do túmulo, ver-me-ás muito tempo muda sob a árvore-menina das minhas veias...Um leito d'instâncias sob a tenda, a estrela verde dentro da bilha, e que sob teu poder eu esteja! nenhuma serva sob a tenda além da bilha de água fresca! (Eu sei retirar-me antes do dia sem despertar a estrela verde, o gafanhoto sobre a soleira e o latir dos cães de toda a terra.)
Eu te anuncio os tempos duma dádiva imensa e a felicidade da noite sobre nossas pálpebras perecíveis...
mas de momento ainda é dia!



e de pé, sobre a lâmina ofuscante do dia, no limiar dum grande país mais casto do que a morte,
as raparigas urinavam, afastando o tecido estampado dos vestidos. "


in: Anabase, tradução de José Daniel Ribeiro

De José Ortega Y Gasset

"...Os lugares-comuns estéticos de nossa época podem ser causa de que interpretemos mal esta fruição que sentia o tranquilo e doce cego da Jônia em fazer ver os objetos belos do pretérito. Pode ocorrer-nos, com efeito, chamá-la de realismo. Terrível, incômoda palavra! Que faria dela um grego se nós a soprássemos em sua alma? Para nós o real é o sensível, o que olhos e ouvidos nos trazem para dentro; fomos educados por uma idade rancorosa que laminou o universo e dele fez pura superfície e aparência. Quando buscamos a realidade, procuramos as aparências. O grego, no entanto, entendia por realidade, justamente, o contrário; real é o essencial, o profundo, o latente; não a aparência, e sim as fontes vivas de toda aparência. Plotino jamais consentiu que se lhe fizesse o retrato, o que seria, segundo ele, legar ao mundo a sombra de uma sombra. O poeta épico alça-se dentre nós, a batuta na mão e a face cega orientando-se vagamente para onde se derrama uma luminosidade maior; o sol é para ele mãos paternas tocando, na noite, a face do filho; seu corpo aprendeu a torção do heliotropo e aspira receber a ampla carícia transeunte. Seus lábios estremecem de leve, como as cordas de um instrumento que se afina. Qual é seu afã? Quisera colocar-nos bem claras as coisas que passaram. (...) Arrancar-nos da realidade cotidiana, eis o que pretende o rapsodo. As frases são rituais, os rodeios, solenes e algo hieratizados, a gramática, milenária. Do presente colhe, apenas, a flor; de quando em quando, uma comparação extraída dos fenômenos cardeais, sempre idênticos, do cosmos - o mar, o vento, as feras, as aves -, injeta na massa arcaica a seiva de atualidade estritamente necessária para que o passado, como tal passado, se aposse de nós e desloque o presente. Tal é o exercício do rapsodo, seu papel no edíficio da obra épica. À diferença do poeta moderno, não vive agoniado pela ânsia de originalidade. Sabe que seu canto não é só seu. A consciência étnica, forjadora do mito, levou a efeito, antes que ele nascesse, o trabalho principal; criou os objetos belos. Seu papel fica reduzido ao refinamento de um artífice."


in: Meditações do Quixote, tradução de Gilberto de Mello Kujaws

De Rainer Maria Rilke (1875 - 1926)

8ª ELEGIA
Com todos os seus olhos, a criatura vê o Aberto./Nosso olhar, porém, foi revertido e como armadilha/se oculta em torno do livre caminho./O que está além, pressentimos apenas/na expressão do animal; pois desde a infância/desviamos o olhar para trás e o espaço livre perdemos,/ah, esse espaço profundo que há na face do animal./Isento de morte. Nós só vemos/morte. O animal espontâneo ultrapassou seu fim;/diante de si tem apenas Deus e quando se move/é para a eternidade, como correm as fontes./Ignoramos o que é contemplar um dia, somente/um dia o espaço puro, onde, sem cessar,/as flores desabrocham. Sempre o mundo,/jamais o em-parte-alguma, sem nada: o puro,/o inesperado que se respira, que se sabe/infinito, sem a avidez do desejo./Uma criança aí se perde, às vezes,/em silêncio, mas é despertada. Ou alguém/que morre, nisso se transforma. Pois os/que da morte se aproximam não mais a podem ver,/fixando o infinito com o grande olhar do animal./Os amantes - não estivesse o outro a ofuscar-lhe/a visão - sentem a obscura presença e se espantam.../Às vezes há um descerrar-se atrás do outro...Mas/o outro, como superá-lo? E o mundo já retorna./Para a criação sempre voltados, nela/vemos apenas o reflexo da liberdade/que obscurecemos. Há no entanto/esses olhos calmos que o animal levanta,/atravessando-nos com seu mudo olhar./A isto se chama destino: estar em face/do mundo, eternamente em/face.

(...)

E nós: espectadores em tudo e sempre,/voltados para tudo, nunca de fora./Saciados, ordenamos. Mas tudo se desfaz./Novamente insistimos e nós mesmos passamos.//Quem nos desviou assim, para que tivéssemos/um ar de despedida em tudo que fazemos? Como aquele/que partindo se detém na última colina para contemplar/o vale na distância - e ainda uma vez se volta,/hesitante, e aguarda - assim vivemos nós,/numa incessante despedida.

in: Elegias de Duíno, tradução de Dora Ferreira da Silva

De Saint-John Perse (1887-1975)

"...Pois eu frequentava a cidade dos vossos sonhos e decidia nos mercados desertos este puro comércio da minha alma, entre vós invisível e constante como lume de espinhos em pleno vento.
Poder, tu cantavas nas nossas esplêndidas estradas!...No deleite do sal estão todas as lanças do espírito...Com sal avivarei as bocas mortas do desejo! Quem não louvou a sede bebendo por um casco a água das areias, pouco crédito me merece no comércio das almas... (E o sol não é sequer nomeado mas o seu poder está entre nós.)
Homens, gente de poeira e de qualquer figura, gente de negócio e de lazer, gente vizinha e gente distante, ó gente de pouco peso na memória destes lugares; gente dos vales e dos planaltos e dos mais altos declives deste mundo ao expirar de nossas margens; farejam indícios, sementes e confessam desalentos a oeste; seguem pistas, estações, erguem tendas no vento leve da aurora; ó prospectores de pontos d'água na crosta do mundo; ó prospectores, ó inventores de razões para partir, não traficais um sal mais forte quando, pela manhã, num presságio de reinos e de águas mortas suspensas do alto sobre as brumas do mundo, os tambores do exílio despertam pelas fronteiras a eternidade que boceja sobre as areias."


"Traçai estradas por onde partam gentes de toda raça, mostrando o amarelo dos tacões: príncipes, ministros, capitães de vozes amigdalinas; aqueles que fizeram grandes coisas, e aqueles que em sonho vêem isto ou aquilo...O padre publicou as suas leis contra o gosto das mulheres por animais. O gramático escolhe o ar livre para lugar das suas disputas. O alfaiate pendura a uma velha árvore um fato novo dum belíssimo veludo. E o homem que sofre de gonorreia lava a sua roupa em água pura. Queima-se a sela do enfermiço, e o odor, ao alcançar o remador no seu banco, como lhe é agradável. (...) E aos mortos sob a areia e a urina e o sal da terra, eis que lhes sucede como à gluma cujo grão foi dado aos pássaros. E minha alma, minha alma em grande estridor vela às portas da morte - Mas diz ao Príncipe que se acalme: na ponta da lança, entre nós, este crânio de cavalo!"


in: Anabase, tradução de José Daniel Ribeiro

A Arte de Escrever (2)

“Também se pode dizer que há três tipos de autores: em primeiro lugar, aqueles que escrevem sem pensar. Escrevem a partir da memória, de reminiscências, ou diretamente a partir de livros alheios. Essa classe é a mais numerosa. Em segundo lugar, há os que pensam enquanto escrevem. Eles pensam justamente para escrever. São bastante numerosos. Em terceiro lugar, há os que pensaram antes de pôr a escrever. Escrevem apenas porque pensaram. São raros.
(...)
No entanto, mesmo entre os escritores pouco numerosos que realmente pensam a sério antes de escrever, é extremamente reduzida a quantidade daqueles que pensam sobre as próprias coisas, enquanto os demais pensam apenas sobre livros, sobre o que os outros disseram. Ou seja, para pensar eles precisam de um forte estímulo de pensamentos alheios já disponíveis.
(...) Em contrapartida, aqueles que são estimulados pelas próprias coisas têm seu pensamento voltado para elas de modo direto. Apenas entre eles encontram-se os que permanecerão e serão imortalizados. – Evidentemente, trata-se aqui de assuntos elevados, não de escritores que falam sobre a destilação de aguardentes.”


Arthur Schopenhauer, in: A arte de escrever

A Arte de Escrever (1)

“Espíritos de primeira categoria nunca se tornarão especialistas eruditos. Para eles, como tais, a totalidade da existência é que se impõe como problema, e é sobre ela que cada um deles comunicará à humanidade novas soluções, de uma forma ou de outra. Pois só pode merecer o nome de gênio alguém que assume como o tema de suas realizações a totalidade, aquilo que é grandioso, as coisas essenciais e gerais, e não alguém que dedica os esforços de sua vida a esclarecer qualquer relação específica de objetos entre si.
(...)
Assim, o produto espiritual de quem pensa por si mesmo é semelhante a um belo quadro, cheio de vida, com luzes e sombras precisas, uma tonalidade bem definida e uma perfeita harmonia das cores. Em contrapartida, o produto espiritual do erudito é como uma grande paleta cheia de tintas coloridas, dispostas de maneira ordenada, mas sem harmonia, coesão e significado.
(...)
O sinal característico dos espíritos de primeiro nível é a espontaneidade de seus juízos. Tudo o que vem deles é resultado de seu pensamento mais próprio e se mostra como tal já na sua maneira de se expressar. Eles possuem, como os príncipes, um poder de atuação imediata no reino dos espíritos, enquanto os outros são todos mediatizados, o que pode ser notado em seu estilo, que não tem um cunho próprio. Assim, todo pensador autêntico assemelha-se a um monarca: ele atua diretamente e não reconhece ninguém acima de si. Seus juízos, como as decisões de um monarca, são provenientes de seu poder supremo e não contêm qualquer mediação. Pois, assim como o monarca não aceita ordens, ele não aceita nenhuma autoridade, de modo que só é válido o que ele mesmo comprovou.”


Arthur Schopenhauer, in: A arte de escrever