A menina das marionetes | Carta para Ana R.| n.1

Querida,

rasgar seda faz um barulho engraçado. Parece fácil, mas faz cócegas. E há o risco de esquecer a medida justa. Por isso, apenas roço na seda. Rasgada é o seu primeiro livro, lanho na pele. Rascante. Rápido. Bem do seu jeito.

Não fosse o tempo este monstro que engole as crias, eu escreveria muitíssimas páginas. Lembro de uma ligação à toa e surpreendente, certa vez. O assunto? Uma das incontáveis versões do meu livro.


Adorei, claro. E nem sabia o quanto ainda iríamos extrair dessa empatia que virou amizade e, provavelmente, nos renderá ainda mais surpresas, encontros.

Falei bastante sobre o Acordados, mas jamais comentei seus poemas. E precisa? Você é o bastante. De todo o modo, tenho lá minhas preferências, também no Sarabanda. Hoje não digo. Que o cansaço me impede de dizer qualquer coisa relevante. Mas deixo um deles, por aqui. Que me pegou, sim. E o resto é futuro.


A menina das marionetes
poema de Ana R.

como os dias não são sempre claros,/
com seus pensamentos muito compridos/a menina fiava longos fios cinzentos./e com sorrisos, imobilizava mãos e pés de bonecos/transformava-os em marionetes.//pintava nelas as feições que lhe agradassem,/ora tristes, ora alegres,/e as empalhava na prateleira do quarto./ora tinha orgulho da coleção,/ora tinha vergonha de ainda brincar de bonecas.//os dias não são sempre claros.e se alguma se soltasse de seus laços/e tentasse abrir os braços por vontade própria,/ela chorava muito,/se debatia e se esperneava,/vocês não têm dó de mim?/e então as marionetes se comportavam.//mas os dias não são sempre claros./as marionetes se comportavam./nem todos os dias são claros.//e por algumas noites escuras,/sem contar para ninguém,/a menina enforcava/pouco a pouco/todas as marionetes nas tramas/dos fios longos de seus pesadelos./e desmanchava-se em lágrimas desesperadas pela manhã.//os dias não são sempre claros/e as noites, invariavelmente escuras.