Protuberância | Carta para Ana C.| n.1




Ana C.,

havia donas de casa em toda parte. Sempre em potes de açúcar, enfiadas de ponta-cabeça, como o santo casamenteiro, de acordo com a velha superstição. Elas queriam meter-se dentro do forno, junto com a torta, ou desmanchar de uma vez na boca alheia (língua afiada, cheia de papas, empapuçada). Truísmo, claro. Dulcíssimas criaturas, quem não sabe? Ou megeras. Ou pior. Onde cinzas são lugar-comum, arranca-se o branco e o preto à força, nada de tonalidades, essa degradação. Escritoras mataram a vontade, ambiguíssimas: gás, afogamento, barbitúrico. E você se matou no ano em que eu nasci, no mês em que eu nasci: outubro de 1983. Só para deixar a porta aberta e a luz acesa. Só para deixar os papéis em desordem e gatos soltos.

Atravesso as mil e uma noites com a coleção de histórias interrompidas. Não era o caso de se enfiar em qualquer buraco. Era o caso de se enfiar na vida. Somos desajeitadas. Somos imperfeitas. E não há perdão para mulheres como nós. O anjo, estabanado, partiu de repente. Agora, somos corpóreas, “realidade inatingível”, improváveis à medida que (às vezes) distanciamos os seios da boca à procura, somos a procura.

E você brinca de sumir entre as risadas. E reaparece com mordidas e cócegas, os cabelos curtos, desfeita. Parente de Hilda? Sim. Mas economiza morcegos. Enfeita o caldeirão com palavrinhas fáceis. Quer atingir em cheio o distraído, ou qualquer alvo. Mas o fogo ilumina, não tem jeito. Há torturas preparadas para cada caso. Foi isto: pensei em te escrever, à toa. Sempre me comove pensar que nos desencontramos. “Como uma dessas cartas extraviadas que, não tendo chegado ao destinatário, podem ser lidas por qualquer um”. Li isso numa obra esquecida no armário da escola, de um autor francês desconhecido.

E (h)ouve Anne. Anne, a primeira que traduzimos. They know I'm something to be caught.


Você não pode ouvir tudo. Vai ficar aí, encantada no desespero, enquanto enfrento as temidas necessidades frugais e mantenho (ao menos uma pequena) distância do marchemélou. Você ainda não pode ouvir tudo. E eu não aprendi o assobio do consolo. Em 2033, se houver mundo e nenhum acidente fatal, terei 49 anos. 49, inteirinhos, descascados, sem disfarce. Dentro de 23 anos.

23.

Você ainda não pode ouvir tudo. Você diz: “Por afrontamento do desejo/insisto na maldade de escrever”. E eu aqui, na Certeza de Fazer o Mal, colo o beijo frio na sua testa quente, exponho nossa protuberância.

Até mais tarde.

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Protuberância

poema de Ana C.

Este sorriso que muitos chamam de boca/É antes um chafariz, uma coisa louca/Sou amativa antes de tudo/Embora o mundo me condene/Devo falar em nariz (as pontas rimam por dentro)/Se nos detivermos amanhã/Pelo menos não haverá necessidades frugais nos espreitando/Quem me emprestar seu peito na madrugada/E me consolar, talvez tal vez me ensine um assobio/Não sei se me querem, escondo-me sem impasses/E repitamos a amadora sou/Armadora decerto atrás das portas/Não abro para ninguém, e se a pena é lépida, nada me detém/É sem dúvida inútil o chuvisco de meus olhos/O círculo se abre em circunferências concêntricas que se/Fecham sobre si mesmas/No ano 2001 terei (2001-1952=) 49 anos e serei uma rainha/Rainha de quem, quê, não importa/E se eu morrer antes disso/Não verei a lua mais de perto/Talvez me irrite pisar no impisável/E a morte deve ser muito mais gostosa/Recheada com marchemélou/Uma lâmpada queimada me contempla/Eu dentro do templo chuto o tempo/Uma palavra me delineia/VORAZ/E em breve a sombra se dilui,/Se perde o anjo.