De Saint-John Perse (1887-1975)

"...Pois eu frequentava a cidade dos vossos sonhos e decidia nos mercados desertos este puro comércio da minha alma, entre vós invisível e constante como lume de espinhos em pleno vento.
Poder, tu cantavas nas nossas esplêndidas estradas!...No deleite do sal estão todas as lanças do espírito...Com sal avivarei as bocas mortas do desejo! Quem não louvou a sede bebendo por um casco a água das areias, pouco crédito me merece no comércio das almas... (E o sol não é sequer nomeado mas o seu poder está entre nós.)
Homens, gente de poeira e de qualquer figura, gente de negócio e de lazer, gente vizinha e gente distante, ó gente de pouco peso na memória destes lugares; gente dos vales e dos planaltos e dos mais altos declives deste mundo ao expirar de nossas margens; farejam indícios, sementes e confessam desalentos a oeste; seguem pistas, estações, erguem tendas no vento leve da aurora; ó prospectores de pontos d'água na crosta do mundo; ó prospectores, ó inventores de razões para partir, não traficais um sal mais forte quando, pela manhã, num presságio de reinos e de águas mortas suspensas do alto sobre as brumas do mundo, os tambores do exílio despertam pelas fronteiras a eternidade que boceja sobre as areias."


"Traçai estradas por onde partam gentes de toda raça, mostrando o amarelo dos tacões: príncipes, ministros, capitães de vozes amigdalinas; aqueles que fizeram grandes coisas, e aqueles que em sonho vêem isto ou aquilo...O padre publicou as suas leis contra o gosto das mulheres por animais. O gramático escolhe o ar livre para lugar das suas disputas. O alfaiate pendura a uma velha árvore um fato novo dum belíssimo veludo. E o homem que sofre de gonorreia lava a sua roupa em água pura. Queima-se a sela do enfermiço, e o odor, ao alcançar o remador no seu banco, como lhe é agradável. (...) E aos mortos sob a areia e a urina e o sal da terra, eis que lhes sucede como à gluma cujo grão foi dado aos pássaros. E minha alma, minha alma em grande estridor vela às portas da morte - Mas diz ao Príncipe que se acalme: na ponta da lança, entre nós, este crânio de cavalo!"


in: Anabase, tradução de José Daniel Ribeiro