Porque tudo o que é vivo é sem moldura

Na Dispersa Palavra, espargimos enigmas. Em outros sítios também migramos.

Guardo todos os poemas: Dentro do Sol a Lua, Porque tudo que é vivo é sem moldura... e agora este. Resta saber: você volta de onde? Eu te espero, eu te espero sozinha, ainda sem reter o que machuca. Mas não venha com dentes pontudos.

Migrar II | Rodrigo Petronio



Migro para ti, além-palavra.
As vozes e murmúrios que te acuam, não, não dizem nada.
Velas não desfraldam mais nem cinzas dessas pátrias.
Pois a luz maior ainda prepara seu sopro de beleza,
solfejo, harpa.


Sabes que o tempo enterra, mas não dança.
Não sabe da tragédia entre duas asas.
Ardem as formas claras do esquecimento, a poeira original,
miragem: farsa.
Que temos com isso? Quem mais vem ao encontro dos arquivos?
O incêndio lunar das casas?
Nossos corpos sejam benditos, membros, orifícios.
Já somos deuses, Amada.


Retenho esse momento entre meus dedos.
A fagulha doura o céu, enquanto pontilhas o horizonte:
O corpo de magma e a espada te atravessam, meio a meio.
Gozo e ressurreição: nossa hóstia, nossa vinha e
novos zelos. Eis minha resposta à tua indagação:
Sermos o veio, a foz, partitura e aragem: sermos.


Amo-te com estes lábios, os de sempre, intocados.
Descubro em cada curva em que volteio, um país, toda
a linguagem.
Abro-me à tua nova flora, cadela, hino entoado entre
ruínas,
Virgem Negra de meus sonhos mais plenos, de minha
miséria mais clara.

Farejo-te nas estações, contorno o círculo de águas.
Nossas cicatrizes, mapas: viagens ainda a desvendar
depois da pele.
Tudo isso é parte do poema, a tatuagem transborda.
Fora da vida, dentro do mundo: és minha alma,quando falo.

Marco-zero, nem pedra sobre pedra do passado.
Aqui, agora, sempre, construo este poema: o teu corpo.
Sou a seiva enraizada em pergaminhos, folhas de relva,cabras.
Espaço virgem, Musa Negra, minha amada sem começo.
Nossa vida indestrutível rumo ao albedo.

Presentes na eterna duração.
O futuro redivivo: chama nossos corpos.
Nunca um amor maior viveram estes meus poros.
Em tua boca, nuca, sêmen, dorso, fronte: retorno ao nada.
Eis a minha ascese, sem templo ou gênese: clarão.
Decifra-me e habita o meu país, ventre e delicadeza
de tuas espáduas.

Deserto de minha sede sem retorno.
Plenitude de um deusa que anima tuas mãos.