De José Ortega Y Gasset

"...Os lugares-comuns estéticos de nossa época podem ser causa de que interpretemos mal esta fruição que sentia o tranquilo e doce cego da Jônia em fazer ver os objetos belos do pretérito. Pode ocorrer-nos, com efeito, chamá-la de realismo. Terrível, incômoda palavra! Que faria dela um grego se nós a soprássemos em sua alma? Para nós o real é o sensível, o que olhos e ouvidos nos trazem para dentro; fomos educados por uma idade rancorosa que laminou o universo e dele fez pura superfície e aparência. Quando buscamos a realidade, procuramos as aparências. O grego, no entanto, entendia por realidade, justamente, o contrário; real é o essencial, o profundo, o latente; não a aparência, e sim as fontes vivas de toda aparência. Plotino jamais consentiu que se lhe fizesse o retrato, o que seria, segundo ele, legar ao mundo a sombra de uma sombra. O poeta épico alça-se dentre nós, a batuta na mão e a face cega orientando-se vagamente para onde se derrama uma luminosidade maior; o sol é para ele mãos paternas tocando, na noite, a face do filho; seu corpo aprendeu a torção do heliotropo e aspira receber a ampla carícia transeunte. Seus lábios estremecem de leve, como as cordas de um instrumento que se afina. Qual é seu afã? Quisera colocar-nos bem claras as coisas que passaram. (...) Arrancar-nos da realidade cotidiana, eis o que pretende o rapsodo. As frases são rituais, os rodeios, solenes e algo hieratizados, a gramática, milenária. Do presente colhe, apenas, a flor; de quando em quando, uma comparação extraída dos fenômenos cardeais, sempre idênticos, do cosmos - o mar, o vento, as feras, as aves -, injeta na massa arcaica a seiva de atualidade estritamente necessária para que o passado, como tal passado, se aposse de nós e desloque o presente. Tal é o exercício do rapsodo, seu papel no edíficio da obra épica. À diferença do poeta moderno, não vive agoniado pela ânsia de originalidade. Sabe que seu canto não é só seu. A consciência étnica, forjadora do mito, levou a efeito, antes que ele nascesse, o trabalho principal; criou os objetos belos. Seu papel fica reduzido ao refinamento de um artífice."


in: Meditações do Quixote, tradução de Gilberto de Mello Kujaws